"Aproveite! Campanha especial! Faça sua matrícula e garanta mensalidades fixas de R$ 180!”, anunciam as propagandas da Faculdade Álvares de Azevedo (FAATESP), instituição privada de São Paulo que busca alunos para a graduação presencial em pedagogia.
“Vou conversar com o diretor e tentar te incluir nesta promoção. Você pode fazer o vestibular em casa e aí passar [as respostas] para a folha oficial aqui na faculdade”, explicou a atendente, por mensagem de voz, quando a repórter pediu informações (sem se identificar).
Em 2017, última vez em que o Ministério da Educação (MEC) avaliou esse curso, foi atribuído a ele o conceito 2 de qualidade – considerado insatisfatório.
Também em São Paulo, os estudantes que quiserem se tornar professores de crianças podem prestar pedagogia na Unisan - Centro Universitário.
Em apenas 3 anos, com aulas à distância, é possível obter o diploma e, em mais 6 meses, receber o título de pós-graduado em psicopedagogia. Tudo isso com mensalidades de R$ 98. A avaliação pelo MEC? Conceito Preliminar de Curso (CPC) 2. Insatisfatório, portanto.
“É só a senhora fazer uma redação [para entrar na faculdade]. Mas o resultado dela não te impede de fazer a matrícula”, explica a atendente.
Os dois cursos acima listados estão entre os cerca de 90 que receberam notas baixas no último CPC e que continuam em atividade. Neles, serão formados profissionais que atuarão na educação infantil e no ensino fundamental 1 – ou seja, que ensinarão os alunos a ler e a escrever nos próximos anos e que serão responsáveis pelo primeiro contato das turmas com a matemática, por exemplo.
Após índices tão ruins, a FAATESP e a Unisan deveriam ter recebido uma segunda avaliação (Conceito de Curso - CC), a partir de uma visita presencial do MEC. Se os desempenhos continuassem insatisfatórios, as graduações seriam descredenciadas. No sistema e-MEC, no entanto, o campo no qual deveria ser informado esse novo índice está em branco. Nem o ministério, nem as instituições de ensino responderam ao g1 se houve a tal visita, mesmo após serem procuradas por e-mail e telefone, ao longo de mais de uma semana.
O que está acontecendo com a formação dos pedagogos é um escândalo, define Ivan Gontijo, coordenador de políticas educacionais da ONG Todos Pela Educação. Segundo ele e outros especialistas ouvidos pela reportagem, a crise é desencadeada pelos seguintes fatores:
crescimento desenfreado de cursos com aulas à distância, com a maioria dos alunos em EAD, em uma graduação que exigiria mais prática e contato presencial em sala;
aulas extremamente teóricas, que não preparam os profissionais para a realidade das escolas;
mecanismos de avaliação de qualidade do MEC falhos, somados à falta de regulação na abertura/fechamento de cursos;
preponderância de uma lógica mercantil, em que mensalidades baixas, promoções e ligações de televendas para angariar mais alunos sobrepõem-se à preocupação com a qualidade acadêmica.
Entenda abaixo:
'Não tinha noção do que fazer': cursos de pedagogia com muita teoria e pouca prática
“Quando comecei a ser professora, não tinha noção do que fazer. Aprendi sozinha, na prática, a preparar os planos de aula. Sinto que, se não tivesse feito faculdade [de pedagogia], conseguiria fazer o mesmo que faço hoje”, diz Paloma Ottwil, formada em uma instituição privada do Recife. Ela dá aulas particulares a crianças e jovens, enquanto procura uma vaga fixa em algum colégio.
Segundo Gontijo, os currículos do curso de pedagogia precisariam ser repensados: há uma carga grande de teoria, sem atividades e reflexões que de fato preparem o futuro docente para a realidade das escolas.
“Tanto os cursos presenciais quanto os à distância são muito teóricos. O estudante lê sobre os grandes pensadores da educação e tem aulas expositivas, mas, em geral, com poucas oportunidades de estágios supervisionados de qualidade e raras discussões de casos reais”, afirma.
“A universidade está cada vez com menos diálogo com a realidade, justamente em uma profissão que é essencialmente prática.”
O novo regulamento do curso de pedagogia, aprovado em 2019, reconhece que a formação de professores está associada à prática, que “precisa ir muito além do momento de estágio obrigatório, devendo estar presente, desde o início do curso, tanto nos conteúdos educacionais e pedagógicos quanto nos específicos".
“É um documento bom, mas que precisa chegar às universidades com apoio técnico e financeiro”, diz Gontijo.
Paloma, por exemplo, conta que um de seus estágios, em gestão escolar, não serviu para praticamente nada.
“Eu ficava na direção, observando o trabalho dos outros, para depois pensar em resolver alguma dificuldade da escola. Mas ficava totalmente escanteada lá, sem orientação, diz.
Uma das iniciativas eficazes para dar mais experiência aos estudantes é o Pibid, programa que oferece bolsas de iniciação à docência aos alunos de cursos presenciais. Mas ele tem sido enxugado nos últimos anos.
Um levantamento do Todos Pela Educação, com base em relatórios da gestão Capes, mostra que, em 2016, eram 89.905 alunos beneficiados. Em 2020, foram 29.856 – redução de 67%.
Ao g1, a Capes afirmou que, em 2018, foi criado um segundo programa voltado aos estudantes de licenciatura: o "Residência Pedagógica".
"Somados a outros três programas destinados a formação de atuais e futuros professores da educação básica (UAB [focado em EAD], Parfor e Proeb [para pós-graduação]), a CAPES concede mais de cem mil bolsas em cursos de graduação e pós-graduação lato e stricto sensu", afirma, em nota.
O relatório do Todos Pela Educação mostra que, somando o Pibid e o "Residência Pedagógica", foram 64.324 bolsas em 2020. Em 2018, era quase o dobro disto: 132.932 vagas.
Nas faculdades privadas, 80% dos alunos de pedagogia estão em EAD
Danilo Henrique já era professor de matemática quando, em 2016, começou a estudar pedagogia em uma universidade particular de São Paulo, no formato semipresencial (aulas on-line, com encontros na instituição apenas aos sábados, a cada 15 dias).
“Tive dificuldade de achar um curso 100% presencial. Pesquisava esses nomes de faculdades que saem na mídia e só encontrava EAD”, afirma.
De fato, houve uma elevação significativa no número de graduações de pedagogia à distância, como mostra o Censo da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Como uma sala de ensino à distância pode ter um número muito mais alto de alunos do que uma turma física, os índices de matriculados são ainda mais alarmantes, como mostra o gráfico abaixo. Nas faculdades privadas, a proporção de estudantes de pedagogia no formato EAD é de 80%.
“O MEC libera a abertura dos cursos EAD, que são mais baratos. É uma proposta interessante para quem precisa conciliar faculdade e trabalho, mas a regulamentação é muito frágil”, afirma Gontijo, do Todos Pela Educação.
“Nos cursos à distância, a faculdade monta o material uma vez só e vende depois. Não precisa contratar mais professores ou liberar mais salas.”
O problema é que, segundo o especialista, o mais rentável pode trazer um impacto significativo na formação de quem alfabetizará as crianças futuramente.
Segundo um relatório do Inep de 2017, formulado a partir das notas mais recentes do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), os egressos dos cursos de pedagogia da EAD tiveram um desempenho pior em relação aos da modalidade presencial: 40,5 pontos x 44,4 pontos, respectivamente. "É uma diferença estatisticamente significativa", afirma o texto.
“A gente não admite médico ou piloto de avião que seja formado em EAD. Por que pedagogos, tão estratégicos para o Brasil, podem se formar à distância? Isso é um escândalo. Eles precisam se preparar para a vivência na própria sala de aula, com experiência prática”, complementa Gontijo.
Danilo conta que, nos raros encontros presenciais com a turma de pedagogia, era procurado por colegas curiosos. “Eles sabiam que eu já dava aula de matemática, então me perguntavam como era o dia a dia de uma escola. Ali, percebi como essa vivência é importante para um profissional em início de carreira. Na EAD, é tudo basicamente em fórum on-line.”
Segundo Raquel Lazzari Barbosa, do departamento de estudos linguísticos, literários e da educação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Assis, "o ensino presencial é muito importante na pedagogia, porque muda significativamente a qualidade da formação dos professores".
"Não podemos negar que muitas pessoas que não conseguiriam fazer faculdade estão estudando por causa da EAD. Só que precisaríamos de mais investimentos e fiscalização. Abrem-se cursos de monte, e as avaliações [pelas quais eles passam] estão descontextualizadas", afirma.
Luiz Aguilar, professor titular da Faculdade de Educação da Unicamp, concorda:
"É um grave problema, porque os cursos estão bombando em termos de demanda, mas os currículos não são objeto de análise ou de preocupação. O que essas pessoas estão aprendendo? As redes municipais e estaduais vão sentir, daqui a alguns anos, o impacto de receberem docentes menos preparados", diz.
Pela resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 2019, das 3.200 horas do curso à distância, fora o estágio, 400 horas devem ser de prática pedagógica presencial (em um cálculo geral, seria por volta de uma manhã a cada 15 dias, por exemplo).
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